quinta-feira, 28 de maio de 2015

As regras do Kapu e o surf no Havaí antigo.

(texto também publicado em Surfguru)
Katsushika Hokusai
No Havaí antigo, antes de qualquer ocidental pisar em solos polinésios, o kapu era um sistema de leis que fazia mediação com o mundo sagrado, regulando o cotidiano das pessoas. O cristianismo e outras religiões apropriaram-se deste termo polinésio, adaptando para o que conhecemos como tabu. Por exemplo, pessoas comuns não podiam pisar na sombra de um chefe e as mulheres eram proibidas de comer alguns tipos de alimentos. Não raramente, a regra desobedecida era aplacada com um sacrifício humano. 

O ritual para se construir desde uma prancha de surf a uma grande canoa de longas travessias seguia as regras rigorosas co kapu. Tudo começava com reverencias a Deusa Kāne durante a construção da embarcação, podendo enterrar um peixe ao pé das arvores que serviriam de matéria prima e entoando cânticos em cada etapa da construção. Em seguida, podiam ser feitos sacrifícios para Kū, o único que exigia sacrifícios de animais ou humanos. Já a partida de uma canoa para uma longa viagem, pedia-se a benção para Kanaloa com rituais próprios

O Deus que representava o surf era Lono, marcando o período de inverno e a estação das chuvas. O Lono era simbolo da fertilidade, também era o pai da agricultura, da música e da paz, o responsável pela abonança. Logo o período das chuvas era o fim do trabalho nos campos, meses de poucas atividades e muito ócio, temporada de ondas e do Festival Makahiki com muita dança e musica. Outro aspecto relacionado ao Makahiki eram as festas e orgias que podiam acontecer na temporada da fertilidade.


Ainda hoje o surf possui o signo da sensualidade, pouco se sabe que este é um aspecto das origens do esporte.


terça-feira, 19 de maio de 2015

Despertar do surf: Hume Ford e a união dos povos do Pacífico


A mais de 100 anos, aos olhos do mundo ocidental o surf era uma atividade exótica de povos primitivos dos cafundós do mundo. Hoje o esporte faz parte da cultura moderna por um esforço de grandes entusiastas. Os grandes protagonistas desta historia são povos tradicionais das águas do Pacífico, mas os personagens da transição do surf ancestral para os nossos dias, também devem ser reverenciados por manterem esta cultura viva.

Mar Brava, by Jose Higuera


Hume Ford era um norte americano conhecido por suas crônicas em jornais de Nova York. Essencialmente um aventureiro, viajou aos confins Ásia, acompanhou a construção da famosa ferrovia transiberiana, que atravessa a Rússia e em 1907, a caminho de novas aventuras na Oceania, aportou no arquipélago havaiano. Logo se deparou com a cultura polinésia e suas peculiaridades, um tesouro escondido para qualquer escritor. 

A primeira vista, o surf era dos aspectos mais fantásticos daquele mundo perdido, nunca visto antes em outro lugar, conectava-se a um estilo de vida e histórias antigas.

Em suas primeiras tentativas de surfar sozinho se frustrou, com grande dificuldade de manipular a enorme prancha de madeira maciça nas ondas de Waikiki, e logo um nativo apareceu para ajudar. Era George Freeth, um beach boy que deu dicas muito uteis para deslizar uma onda. Neste dia, o surfista local e o ilustre viajante norte americano começaram uma amizade. Neste contexto, uma comissão especial do congresso dos EUA visitava o arquipélago para avaliar se o Havaí estava pronto para se tornar um Estado e Hume Ford usou sua influência para colocar seu amigo Freeth como guia da expedição. Aproveitando a boa repercussão junto aos representantes do governo, articulou uma visita do surfista para fazer demonstrações daquele esporte na Califórnia, fato que revolucionou tanto as técnicas de salva-vidas nos EUA, como transformou aquele Estado em grande representante do esporte.

Fundação do primeiro clube de surf e de canoa outrigger _ Após uma breve estadia na Austrália e outros portos do Pacífico, Hume Ford se deu conta de que aquele era o último resquício de um esporte sagrado e outros conhecimentos riquíssimos, comum aos povos polinésios. Daí por diante, focou muito do seu trabalho na valorização do surf, da canoa vaka moana e toda aquela cultura tradicional. Voltando ao arquipélago em 1908, articulou junto a locais influentes, donos de hotéis, além da Rainha Emma, que cedeu uma área para construção do Outrigger Canoe and Surfboard Club, o primeiro clube para preservar e incentivar o surf e a tradicional canoa. Além de agitar a cena do surf havaiano, muitos norte americanos tiveram seu primeiro contato com o esporte pelas matérias que Ford escrevia para revistas.


Um laboratório de convivência inter-racial - A missão de Hume Ford teve ainda outro incentivo, quando conheceu o famoso escritor Jack London, que passava pelo Havaí a caminho da Oceania. London já era um escritor consagrado nos EUA e possuía e possuía ideias comunistas muito particulares, moldadas por intensas experiências junto ao mar. Os dois escritores tiveram longas conversas e viam o Havaí como um exemplo de lugar onde diversas raças e etnias conviviam harmonicamente. Para ambos, aquilo parecia uma espécie de comunismo espontâneo. Incentivado pelo ilustre colega e por outros entusiastas, Ford passou a encarar sua aventura como uma missão.

O primeiro esforço de unir os povos do Pacífico -  Daí por diante, Hume Ford passou a usar suas influências e esforços unir as ilhas do Pacífico em uma convenção que ele batizou de Pan-Pacific Union, com sede em Honolulu. Entre 1915 e 1937 a convenção buscou promover a paz e a valorização da cultura polinésia entre as ilhas do Pacífico.  

Em 1945 Hume Ford morreu aos 77 anos na ilha de O'ahu, sempre lutando para preservar um pouco a cultura e o estilo de vida tipicamente polinésio. Sabe como é, amor a primeira vista...


segunda-feira, 11 de maio de 2015

Prelúdios do surf contemporâneo


Prelúdio é aquilo que antecipa os fatos, os avós dos nossos tempos. A forma como eu surfo, o que eu visto ou vejo o mundo é o resultado de experiências remotas. O novo só acontece hoje porque um louco gritou aquelas idéias um dia, em alguma praça, a muito tempo...




No ano de 1891 morria o Rei Kalākaua, o ultimo Grande Chefe havaiano, quem fez a transição aos tempos modernos, um rei respeitado por suas habilidades no mar e na política. Era alvorada no arquipélago polinésio, e a paisagem começava a mudar, as tradições havaianas eram esquecidas no esforço de entrar naquele mundo novo.


Imagine as transformações do início do século XX, tempos de grandes tecnologias, da indústria, das máquinas, do petróleo e do crescimento populacional, das guerras mundiais; enfim, os tempos modernos. Neste contexto, o Havaí se tornava parte do território dos Estados Unidos da América (EUA), com uma posição estratégica, geopolítica e economicamente, transformando-se em um dos principais entrepostos do Pacífico. Por ali paravam aventureiros, mercadores e quem sabe até aqueles caçadores da mítica  baleia Moby Dick. 

Chegava o ano de 1900 e nas redondezas de praias como Waikiki, uma nova geração atraía a atenção dos visitantes, o surf e o gingado nativo renasciam como resistem as raízes depois de uma queimada. A cultura pagã havaiana passava a ser reconhecida por sua beleza exótica. 

Os surfistas que precederam todos nós eram uma mistura dos atletas ocidentais com forte influência dos costumes havaianos, um tipo que a mídia da época gostava de mostrar, jovens simpáticos e aventureiros com pele a bronzeada. Esta geração criada sobre os modos ocidentais, eram nativos havaianos, mestiços hapahaole ou haoles estrangeiros que viviam entre os locais, divertindo e se confraternizando junto ao mar. O surf havia quase desaparecido durante a última década do século XIX, mas aquela geração voltava seus interesses a certos aspectos de uma cultura a beira-mar, ficando conhecidos como os beach boys


O esporte dos extintos reis havaianos exercia uma enorme atração turistica, mesmo sendo uma décima parte do que fora o esporte nos tempos áureos ancestrais.


O mais famoso dessa geração de beach boys foi George Freenth; primeiro grande representante do estilo de vida havaiano, que se tornou referência na Califórnia e indiretamente para o resto do mundo. George Douglas Freeth era um dos garotos gente boa,  que circulava por Waikiki no começo do Século XX. Nascido em na ilha havaiana de Oahu em 1883, era considerado um hapahaole, com mãe havaiana e pai inglês, Freeth era um jovem bem educado e com espírito destemido. Participava dos clubes de natação locais e se destacava também como mergulhador. Em 1900 começou a surfar e praticar remadas nas canoas vaka moana, naquele que foi o renascimento das tradições náuticas havaianas. Este era o espírito havaiano, apaixonado não apenas pelo surf e pelo esporte, mas pelo oceano e a vida beira-mar.


A vida daquele menino local mudaria definitivamente ao ser convidado para fazer demonstrações de surf pela costa da California, outra região norte-americana com potencial turístico semelhantes ao Havaí.  A chegada de Freeth na Califórnia em julho de 1907, mudou definitivamente a história da região, surfando nas praias de Redondo e Venice. Tornou-se celebridade local, mas nunca juntou dinheiro. Talvez este não fosse o ideal de um nativo polinésio, que usava sua energia para treinar e comandar um corpo de salva-vidas nas antigas habilidades havaianas: a nadar entre as ondas, usar as correntes da costa a seu favor, usar pranchas de surf e outras técnicas. Na época, o salvamento era um grande risco até para o salva vidas, dando grande prestígio a Freth por toda comunidade local. 


Pouco se conhece da história deste personagem do surf, mas este foi um importante preludio do esporte que conhecemos hoje. Em julho de 1910 Freeth ganhou a medalha de honra do congresso nacional norte-americano, o maior reconhecimento que um civil pode receber do governo, pelo salvamento da tripulação de um navio japonês em um dia com enormes ondas. Ainda hoje, o surf carrega lá no fundo de sua essência uma imagem relacionada ao estilo beach boy.

O surfistas que plantou a primeira semente do surf moderno morreu com um grande mérito entre salva-vidas de todo o mundo, mesmo que os primeiros impactos tenham sido locais, Freth encontrou raízes para que a cultura polinésia pudesse germinar em solos continentais.

Freth provavelmente nunca soube dos frutos de suas ações.