terça-feira, 27 de maio de 2014

Entrevista com o shaper Rodrigo Matsuda: entre alaias e a terra dos tsunamis.

Texto Madeira & Água publicado em: Surfguru

Surfar é deslizar nas ondas, brincando na face do mar como fazem os peixes. Dito isto, fica fácil imaginar porque os surfistas são tão aficionados pelo esporte, mas esta é apenas a superfície, mais afundo existe um universo riquíssimo. Neste contexto, os shapers, enquanto construtores de pranchas de surfe carregam consigo a sabedoria dos xamãs, com conhecimentos que ora elevam o surf para além dos limites, ora resgatam a essência mais pura do esporte.
 
Jr. Faria Surfando uma prancha Lasca. Foto: Jair Bortoleto

Rodrigo Matsuda é um destes expoentes. Nascido em São Paulo, mora no Guarujá e é construtor das pranchas de surf mais tradicionais que existem, as Alaias, Paipos e Handplanes. Sua marca chama-se Lasca Surfboards.
Rodrigo é jovem, mas tem a voz calma daquelas pessoas experientes. Antes de tudo é um grande entusiasta do esporte que foi morar no Japão em busca de um rumo e acabou aprendendo fazer pranchas de surf de madeira com mestres da terra dos tsunamis. A seguir, ele conta um pouco da trajetória, o conceito das suas pranchas, a proximidade com as artes e o estilo de vida de um shaper brasileiro. 


Rodrigo Matsuda com suas pranchas Lasca

M&A: Hoje é difícil imaginar um shaper que não seja apaixonado pelo mar. Neste contexto, qual sua história com este esporte? O que te atraiu para este universo?

Matsuda: Desde criança pratiquei esportes, mas o que me atraia mesmo eram coisas ligadas à arte, adorava desenhar, trabalhei com vasos de cerâmica artesanais, pintei quadros, gostava de ir a museus. 
Já no começo da adolescência comecei a andar de skate e surfar com influência do meu irmão e meus primos mais velhos. Tinha muito interesse em saber sobre as pranchas, tamanhos, modelos, também gostava muito dos logotipos das marcas. E assim fui me interessando cada vez mais por esse universo que o surf traz.
M&A: Existem muito ídolos no esporte, mas cada um tem suas referências. Quais são as suas?
Matsuda: As minhas referências são pessoas que tive convívio, acredito que para ser uma boa referência, além de bom profissional, precisa ser uma boa pessoa. 

Os meus maiores ídolos são os shapers: Yuichi Endo, Tom Wegener, Nobby Okhawa, Tatsuro Ota. Além de ótimos profissionais gosto muito a forma que eles divulgam nosso esporte, de uma forma simples divertida .

M&A: Você já trabalhou com pranchas convencionais, digo, aquelas derivadas do petróleo (a base de poliuretano, resinas, etc)? O que te levou ao movimento alternativo das pranchas de madeira e quem foi seu mestre neste ofício?
Matsuda: Sempre estive dentro da sala de shape, presenciei muitos shapers fazendo pranchas e até já me arrisquei a fazer pranchas convencionais, como a mini-simmons que tenho até hoje, mas nunca trabalhei com esse tipo de material.

O que me trouxe a este movimento foi a facilidade em lidar com madeira que adquiri quando trabalhava com meu tio fazendo vasos de cerâmica. Além disso, sempre tive problemas respiratórios, e se eu trabalhasse com resinas, poliuretano, isopor, acredito que não faria muito bem para minha saúde e a minha carreira seria muito curta! (risos)

Aprendi shapear Alaias, Paipos e Handplanes no Japão em Kanagawa-ken com Yuichi Endo um shaper muito experiente e um grande amigo que me deu essa oportunidade de conhecer esse ofício.

M&A: Acredito que morar no Japão deva ser uma experiência muito intensa e marcante. Não ouvimos muita história sobre o surf por lá. Como é o surf no Japão? É muito diferente do brasileiro ou do resto do mundo?

Matsuda: Acho o surfista japonês bastante evoluído culturalmente, eles têm muito conhecimento sobre a história do surf, pranchas, equipamentos.

Hoje o Japão sedia o The Alley fish fry Japan e o Greenroom festival, que são importantes festivais de cultura-surf mundial.

Vejo também que eles não se preocupam muito com a performance, tanto que não vemos muitos surfistas japonese se destacando em grandes campeonatos ou no ranking da ASP .

No mar o numero de surfista é muito grande, bem parecido com o Brasil, vemos surfistas de todas as idades, mas não vemos conflitos ou brigas, tem um "crowd" organizado (risos).

M&A:Existe certa dose de arte quando um bom shaper desenha uma prancha de surfe. Todas as curvas do shape, cada detalhe, possui uma intenção, seja voltada para algo funcional, que beneficie uma manobra, tipo um de onda, ou mesmo uma intenção estética, conceitual, remetendo a uma época ou um estilo de vida.


O que você busca quando desenvolve suas pranchas de surf?

Matsuda: Procuro conciliar o lado funcional com a estética, gosto de imaginar o movimento da água quando a prancha entra em contato com a onda o caminho que ela percorre. Acredito que o funcional e a estética andam sempre lado a lado.

Você sabe aquelas pranchas que te olha o outline e as curvas e diz: essa prancha deve funcionar bem? 



Andrew Serrano mostrando como se surfa com uma alaia.  Foto Jair Bortoleto.



M&A: Eu sei que fazer uma prancha de madeira não é tão simples como parece. Qual é a dificuldade de construir pranchas de surf de madeira? Fale dos materiais e do processo de trabalho.
Matsuda: Cada placa de madeira tem suas particularidades, elas variam muito entre peso, flexibilidade, densidade e qualidade. Antes de fazer qualquer prancha, preciso analisar a placa para saber qual melhor destino, seja um handplane, uma alaia ou paipo.

Como se trata de madeira, para se conseguir curvas , fundos, bordas é um pouco mais difícil, e para isso usamos ferramentas apropriadas para madeira. Mas para selar a prancha e bem simples, pois necessitamos apenas de um pedaço de pano e os óleos e cera certos. 

M&A: Hoje está cada vez mais comum a mecanização no mercado de pranchas de surfe convencionais, mas sabemos que o seu trabalho ainda é artesanal. Qual diferença entre uma prancha feita de forma manual para outra em processo mecanizado?
Matsuda: Meu trabalho em todos os processos é feito artesanalmente. Hoje acredito que meu publico me valoriza e compra meus produtos exatamente pela forma de trabalho que venho executando.

Acho que as máquinas de shape são validas para os shapers que fazem pranchas de alta performance e precisam fazer modelos padronizados para os atletas, ou os que buscam esse auxilio da máquina para uma maior demanda do mercado.

Mas a máquina e feita para auxiliar o shaper e não tomar o lugar dele, o shaper antes de usar essas máquinas precisa saber fazer muito bem pranchas manualmente e ter um bom conhecimento, ou então à arte da profissão acaba.

M&A: Temos visto no Brasil o surgimento de revistas de surf, mídias digitais e programas de TV com maior abrangência, isto sem falar no braziliam storm e uma enxurrada de excelentes surfistas representando o país mundo afora. Como avalia o momento do esporte?
Matsuda: Apesar de eu não acompanhar muito campeonatos de surf, os surfistas brasileiros são muito competitivos, têm muita garra e estão representando bem o Brasil. Se levarmos em conta a qualidade das ondas no Brasil e o apoio que esses surfistas têm no início da carreira, já são vitoriosos. 

Nisso tudo, o que me assusta um pouco são grandes empresas que não tem ligação nenhuma com o surf, patrocinarem campeonatos e surfistas. Qual é o intuito? Para mim é apenas uma jogada de marketing, acredito que essas empresas não conhecem o real sentimento que o surf traz aos seus adeptos.

M&A: Existem lugares que desempenharam um papel histórico para o surf. Austrália, Califórnia e Havaí são exemplos clássicos de destinos que muitas gerações de surfistas optaram para continuar próximos ao universo do esporte. Em sua opinião, é possível trabalhar e viver aquele estilo de vida hoje no Brasil? 
Matsuda: Acredito que sim, este é o estilo de vida que estou buscando para mim e minha família. Porém, as dificuldades são maiores do que lá fora.

Vivo uma vida bem simples, mas amo meu trabalho e minha família, e hoje consigo ir surfar com minha filha, desfrutar bastante da natureza e ter uma vida saudável. Somos bem felizes, e acho que isso e o mais importante.


terça-feira, 13 de maio de 2014

As pranchas de surf de Dom Quixote

Texto Madeira & Água publicado em: Surfguru,
 
Dom Quixote morreu lutando contra moinhos, mas pensava serem monstros. Hoje tem crédito na praça, sabe como é a sutil diferença entre o estranho e o genial.
 
Van Gogh: Dom Quixote de la Mancha


Dizem que foi assim que aconteceu quando o surfista Ricardo Bocão chegou com uma prancha de quatro quilhas nas praias cariocas no começo dos anos 80. A ideia morreu na praia, faltou espaço para o novo naquele momento. Hoje é um modelo consolidado entre surfistas e o mérito da invenção ficou entre o brasileiro e o contemporâneo australiano Glen Winton. No entanto, a prancha de quatro quilhas ficou fora de uso por mais de 20 anos.   

Este e muitos outros fatos curiosos do universo do surf mostram o caminho tortuoso das inovações. O que não podemos é subestimar hoje algumas idéias meio esquisitas. Como aquele sujeito que abandona carreira certa por algo incerto que lhe inspire melhor. Podemos imaginar inúmeros casos como este, mas tenho um especial interesse nos shapers inovadores de prancha. Sejam os novos ou velhas lendas do esporte. Quem foram os grandes gênios do design de pranchas de surf? O que sabemos hoje é que, quase invariavelmente, pensavam pouco afora da caixa. Capiche?

Em um livro sobre tendências que eu li tempos atrás mostrava justamente (tá aqui o link), um pequeno número de pessoas criativas ou abertas à novas experiências, com curiosidade e coragem de experimentar coisas novas. A maioria de nós segue tendências como manadas de boi. E não há nada de errado nisto é a natureza da nossa evolução. 

Por isto dou um salve àquelas pessoas desbravadoras de novas idéias, pois podem ser nossa salvação futura ...ou não. 

Até hoje, os melhores shapers de prancha são surfistas em busca de algum conceito ou sensação. Isto é fato, basta olhar para traz. E assim, entre o beco escuro do ostracismo e a luz da vanguarda, sempre existiram surfistas melhorando o desenho das suas pranchas em busca de alguma essência escondida dentro das ondas. 

Nem a revolução industrial e sua divisão do trabalho mudaram a profissão de quem constrói pranchas de surf. 

Existe algo de Don Quixote neste ofício.




Dando uma subvertida no esquema de Henrik Vejlgaard, fica mais ou menos assim: