Façamos uma regressão:
Voltamos o tempo de Kely Slater, Gabriel Medina, das pranchas de alta performance e salva vidas acelerando jet skis.
Vamos além dos pranchões dos anos 50, das primeiras quilhas, da invenção da TV e do rádio.
Enfim, chegamos em 1819, data que o surf ancestral morreu.
Ainda no final do século XVIII, era possível ver no Havaí uma vila inteira dentro da água surfando; mulheres, homens, idosos e crianças. Aquilo aos olhos destreinados e civilizados podia parecer um bando de desocupados, mas era parte de um sistema complexo e muito rico que envolve religião, política, economia e estilo de vida. Não que o surf fosse uma religião, mas o sistema de crenças nativo pregava estes prazeres cotidianos como reverência aos deuses.
Um antigo festival de dança, musica e surf
Um desses momentos era durante o festival de Makahiki, perído que marca o inverno havaiano, assim como a temporada de ondas no arquipélago. As festividades eram em homenagem a Lono, o deus da paz e da fertilidade, envolvendo muita dança e musica, jogos, competições de surf, natação, canoa entre outros. As festividades neste período eram frequentes, as festas podiam durar a até o amanhecer, dançando, cantando e se divertindo.
O Kabu era um sistema de regras seguido a risca, como uma doutrina religiosa. Apesar de envolver restrições e rituais, para nosso espanto, as proibições não restrungiam o nudismo, o sexo, os jogos e o ócio. Como não possuíam escrita, todo o conhecimento era passado em canções, logo a música e dança eram peça fundamental para manter vivo os valores e conhecimentos ancestrais. Muito do que as igrejas ocidentais vêem como pecado, o sistema mistico polinésio via como reverência aos deuses.
Alguns historiadores e pesquisadores chegam a sugerir que a vida no arquipélago era o mais próximo que existiu das muitas lendas sobre o paraíso terrestre. O sistema de agricultura farto, a água doce abundante, a intimidade com a vida marinha, davam a estes povos tempo para se dedicar as atividades culturais e desportivas. E eles e dedicavam as suas paixões, como o surf, a canoagem e a natação, segundo o relato dos primeiros europeus, eram quase anfíbios.
Paraíso em guerra
Mas nem tudo era amor e sombra fresca, haviam conflitos entre territórios e clãs. Quando chegaram os europeus, passou a ser frequente a presença de comerciantes, caçadores de baleias e aventureiros, complicando a vida simples. A civilização traria armas de fogo para a guerra, machados e instrumentos para o cotidiano, jogos de azar, comércio e outras ambições civilizadas. Mas o pior foram as doenças, que aos poucos devastaram os nativos a uma fração do que eram.
Antes dos fim dos tempos, houve um ápice daquela cultura, quando o chefe Kamehameha conseguiu unificar o arquipélago depois de uma longa guerra. Finalmente, terminara os tempos de Ku, o deus da guerra e se iniciava o tempo de paz, signo do Deus Lono.
A chegada da civilização trouxe dois presságios: um bom, outro devastador. O primeiro anunciava tempos de paz conquistada pelo chefe Kamehameha, quando o Capitão James Cook atracou nas ilhas havaianas pela primeira vez. Era o início do festival Makahiki, e o Capitão inglês foi confundido com a encarnação do Deus Lono. Em seguida veio o mal agouro, quando a expedição de Cook saiu para novas explorações, mas precisou voltar para reparar seus navios. Era final do festival e aquilo foi visto com muita desconfiança pelos nativos. Nem a morte de Cook foi capaz de livrá-los dos presságios.
A morte de um grande chefe
Em 1819 o Rei Kamehameha morreu, e com ele o surf antigo definhou. O grande Chefe foi substituído por sua esposa e filho, que abandonaram imediatamente o festival e as regras do Kabu. O segundo presságio se confirmou depois de um ano, quando desembarcaram missionários Protestantes.
Os primeiros calvinistas que chegaram encontraram uma situação propícia para dogmatizar os nativos. A instabilidade política, as doenças e a influência nociva da civilização tornavam os bons tempos em uma fase muito difícil. Logo, a missão dos religiosos era organizar aquela bagunça e trazer progresso para as ilhas. A primeira atitude foi transformar as proibições do Kabu naquilo que se convencionou chamar de tabu. Os tabus da igreja, apesar de usarem um conceito paralelo a cultura nativa, pregava o oposto, proibindo a nudez, o esporte, o jogo, o sexo fora do casamento, o ócio, defendendo uma vida casta e muito trabalho.
Os missionários também viam nas festas, na música, na dança e no surf um elemento nocivo. Acelerando a morte das principais tradições ancestrais.
Naufrágio de uma cultura
O surf morria com o Kabu, tornando-se um tabu. Em 1844 um historiador que passava pelas ilhas afirmou que o esporte nativo, que antes levava dezenas de pessoas para dentro da água por horas, passou a ser uma visão muito rara. Por muito pouco a arrogância civilizada não percebe a riquesa cultural e os conhecimentos da cultura havaiana e polinésia, pensando ser detentora de todo saber. Os polinésios conseguiram conquistar um território de águas maior que qualquer continente.
As tradições ancestrais que o surf faz parte ficaram esquecidas inícios do século XX, quando lentamente, o surf renasceu para o mundo civilizado, chegando ao momento em que vivemos. Mas isto são outras histórias...
Fonte: The 1800’s: Surfing’s Darkest Days.