quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Significados do Surf - parte 1: surf trip e rebeldia

Vamos falar daquilo que está enraizado no imaginário dos surfistas, uma prática que ainda hoje traz ares míticos ao esporte, além da imagem de rebeldia e do espírito de aventura que definem o surf. 




O verbo “buscar” ou o slogan “live the search” sintetizam bem um aspecto próprio do estilo de vida (ou life stille) surf; a procura por novos lugares, ondas e experiências. A surf trip ou o surf safári fazem parte do espírito nômade e desapegado dos primeiros surfistas. Nos tempos modernos passaram a se confundir com um tipo de consumo desprovido de sentidos ou significados, mas isto vamos falar mais adiante. 



Os primeiros surfistas foram os inventores, não só da prática do surf, mas da ideia de se locomover; a busca por paraísos para viver calmamente. A principal teoria sobre a disseminação do povo polinésio por milhares de ilhas do Pacífico é de que eles se fixavam em um local e, tempos depois, quando a população crescia, organizavam expedições para novos horizontes. Eram os "Argonautas do Pacífico". Muitas vezes saiam dezenas ou centenas de pessoas embarcadas em canoas seguindo as correntes e desembarcando em novas ilhas inóspitas, ou em trágicos naufrágios. Este impulso incansável de gerações garantiu não apenas a ocupação de lugares incrivelmente distantes, mas evitou o superpovoamento e outras mazelas, como falta de comida ou guerras entre povos irmãos. 


Imagem tirada do site Wanna Surf (http://pt.wannasurf.com).
Surf em Madagascar: mundos distantes.


Quando o surf chegou aos EUA, o esporte se desenvolveu lentamente nas primeiras décadas e seu significado se fundiu a cultura emergente. Imaginem só, um país em franco crescimento econômico e uma cultura que vinha influenciando o mundo todo com o famoso american way of life. Em contraste ao orgulho norte americano, um bando de moleques da Califórnia cultuavam um esporte e costumes de um povo dado como primitivo, preguiçoso e insolente. A filosofia e o estilo de vida dos nativos havaianos eram diferentes daquela vendida no rádio, nas revistas e posteriormente nas televisões. Nascia à imagem de rebeldia do surfista, uma mistura entre a visão de vida dos povos tradicionais com ingredientes ocidentais. 


Durante a década de 30, iniciou-se uma busca por ondas na costa norte americana, imortalizada décadas depois com a musica dos Beach Boys, Surfin Safari. Nesta época  houve a grande crise, e vida se tornou dura por toda a parte, exceto nas praias da Califórnia, onde qualquer um podia construir uma prancha com as próprias mãos e se divertir surfando ou em festas na praia, sem precisar de muito dinheiro para isto.

As viagens dos surfistas, ou o isolamento fazem parte da busca por lugares ainda escondidos da civilização, com natureza selvagem, fora da regra moderna, conservadora e massificada. A rebeldia do surfista era contra uma cultura padronizada, e a insolência, era  uma lógica inversa ao consumismo, por uma vida simples, em comunidade, junto ao mar. Não é a busca pelo paraíso perdido, mas por um estilo de vida harmônico.

Photograph by © LeRoy Grannis.

Nos anos 50, com a construção da Pacifc Coast Highway, surfistas passaram a viver de forma semelhantes aos contemporâneos da geração Beat, viajando sem destino certo, vivendo de trabalhos temporários, em busca de novos spots de surf e uma vida livre das regras rígidas daquela época. Moravam em choupanas ou casas abandonadas, muitas vezes viajavam para praias isoladas e viviam dentro de carros velhos durante meses, sempre entre amigos ou com suas garotas, contrariando os ideais de fixar residência, casar, arrumar trabalho e constituir família.

Finalmente, nos anos 60 o esporte se profissionalizou, muita coisa melhorou, mas o surf também se enquadrou em muitos padrões, passou a vender seu apelo visual, seus conceitos e se tornou um mercado de consumo. Eu te pergunto: em meio aos ganhos, algo ficou para traz?

Uma coisa é certa, nossa imagem de aventureiro e estilo de vida easy way vendem bem, de carro a chinelos de dedo. Para isto acontecer, a rebeldia do surfista deixou de ser contestação e as surf trips estão mais para uma visita à parques de diversão. Temos muito à refletir.
(continua...)
TEXTO DE REFERÊNCIA Waves of Commodification: A Critical Investigation Into Surfing SubcultureA Thesis Presented to the Faculty of San Diego State University. Master of Arts in GeographyMichael Alan Reed , 1999.
(http://www.elcamino.edu/Faculty/mreed/general/Thesis/thesis.htm)

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Sobre a Expedição Kon Tiki

A Expedição Kon Tiki é um livro que deixou uma questão enigmática para surfistas e antropólogos. 

Foto da expedição Kon Tiki
Trata-se de uma história real ocorrida em 1947, quando o norueguês Thor Heyerdahl e uma seleta tripulação atravessaram o Oceano Pacífico em uma balsa precária, igual à dos povos pré-colombianos que viveram nas imediações do Peru há 1500 anos. 

Costumava ser um livro difícil de encontrar, normalmente disponível apenas nos melhores cebos. Em 2012 foi lançado uma versão do livro para o cinema que concorreu ao Globo de Ouro, devendo voltar às prateleiras das livrarias. 



Thor Heyerdahl nasceu na Noruega em 1914, estudou biologia e geografia na Universidade de Oslo e durante a I Guerra Mundial viajou para algumas ilhas do pacífico, chegando a ficar noivo da filha de um chefe Polinésio por um curto período. Anos depois, trabalhando como pesquisador, voltou a morar em uma ilha do pacífico onde encontrou ruínas e indícios de uma civilização com traços muito semelhantes as da América Central e do Sul.  As evidências encontradas levaram-no a escrever uma teoria de que os povos do pacífico teriam uma cultura influenciada pelos antigos americanos. 
Quatro dos cinco tripulantes durante a viajem de 101 dias
A teoria foi rapidamente rejeitada, uma vez que a distancia geográfica era enorme, separados por um vasto oceano, impossível de ser navegado pelas embarcações primitivas. Pois é aí que se inicia a aventura Kon Tiki, nome do Deus Sol Inca, comum aos dois povos. 
Pescarias do Pacífico: tubarão para o jantar.
O livro conta a história deste norueguês tentando provar sua teoria: de que povos que habitavam a região onde hoje é o Peru, se integraram à cultura polinésia. É a narrativa de uma aventura; desde a decisão por fazer a viajem; a procura por uma tripulação; a difícil construção do barco (uma balsa que seguia rigorosamente o projeto dos povos antigos); e finalmente, a travessia de 101 dias e aproximadamente oito mil quilômetros.  

Ainda hoje, alguns antropólogos afirmam que a cultura dos povos do pacífico não sofreu influência da antiga civilização americana, mas a expedição provou ser totalmente possível. Nas palavras de Thor: “o oceano não foi uma barreira para àqueles povos antigos, mas uma estrada para lugares desconhecidos”. 


A expedição Kon Tiki faz uma ponte entre duas civilizações antigas, separadas por um enorme oceano: os povos que habitavam a região da América do Sul e os polinésios, espalhados por milhares de ilhas no Pacífico. Detalhe é que, além das muitas semelhanças encontradas pelo etnógrafo Thor, ambos são povos que reivindicam a origem do surfe moderno. O livro não trata em nada deste assunto, mas não deixa de ser curioso, uma possível ligação entre os antigos peruanos que pegavam carona nas ondas com suas canoas de junco e os inventores do surf.

Kon tiki é um livro emocionante e inspirador. Mesmo não comprovando se ambas culturas antigas praticantes do surf, tiveram contato em um passado remoto, nos traz  ainda mais respeito àqueles nativos.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Construindo uma Alaia da década de 30

Já houveram rituais complexos para construir uma prancha alaia, desde o corte da arvore até o shape  da pranchona. Nos EUA da década de 30 e 40 a coisa mudou, os processos industriais e a busca por inovação estavam consolidadas, e as pranchas passaram a ser construídas no método moderno, com diferentes madeiras, colas e acabamento em verniz ou resina epoxy. Sendo assim, com ajuda do amigo, guru e mestre marceneiro Murilão, nos metemos a fazer uma alaia inspirada nas ancients boards da costa oeste da norte americana. 

Tela de Ganadu Vincenzo_HangTen.
As pranchas alaia da década de 30 passaram a ser feitas de madeiras leves, como a balsa, associadas a outras mais duras e resistentes, como a vermelha (redwood). Na época houve um salto tecnológico com as colas e resinas a prova d'água. Com estas tecnicas, as pranchas passaram a ser mais leves que as originais havaianas. Não costuma-se usar parafusos, pois a maresia é infalível em estragá-los, além disso a madeira expande e se contrai de maneira diferente dos metais. A técnica é colar usando pedaços de madeira chamados cavilha. Madeiras mais leves geralmente são porosas, então não adianta colocar apenas cera ou óleo para impermeabilizar, resina epoxy pode ser a melhor solução.

Projeto de uma prancha da década de 1930.
Tudo começa com o projeto, de preferência com papel e lápis, determinando o tamanho, o modelo e medidas da prancha. Desenhar é fundamental, trata-se da concepção. A princípio, a internet pode ajudar muito, com dicas e inspiração para o shape. 

Madeiras caixeta e cedrinho. Atento para não usar madeiras protegidas. 

Depois vem a escolha da madeira, que vai determinar o peso, a flutuação e o acabamento que vai dar à prancha. Minha escolha, entre as madeiras que encontrei disponível na rua do Gasômetro em São Paulo, foi a caixeta e o cedrinho. O cara da loja me disse ser madeira de boa procedência, mas depois descobri que a caixeta é protegida e costuma ser de extraída de forma ilegal. Não é uma prancha que vai acabar com as matas brasileiras, mas sou da opinião de que, se não podemos evitar o desmatamento, não deveriamos gastar nem um centavo com este mercado clandestino... Paciência, vamos aprendendo.
Existem madeiras boas para construção de alaia, entre as brasileiras existe o cedro rosa, mas o que tem se usado é a paulonia, que por não ser  brasileira é a melhor opção para nossas florestas.

Marcar as tábuas é sempre bom...

A melhor maneira de cortar a madeira é usando um molde com as medidas certas, preferencialmente desenhado e preparada anteriormente (não foi o caso desta). Feito os riscos, vem a hora da serra tico-tico, ferramenta fundamental do projeto. 

O peixão tá nascendo... Shape básico.
Feito o corte no formato certo da prancha, começam os detalhes. Para ganhar flutuação, decidi dar uma ajudinha à natureza, usando uma furadeira e uma grosa (outra peça importante) começa um trabalho de deixar a tábua central oca. As pranchas antigas usavam balsa, mas hoje esta madeira é caríssima e rara. Para certos tipos de limitações usamos a imaginação.

Técnica para deixar a tábua oca e ganhar flutuação.

Feito os truques e encaixada as cavilhas, entra o momento de montar o conjunto. Esta é a hora para  últimos acertos antes de receber a cola. Na rabeta optamos por colocar uma peça de cedrinho para dar segurança, enquanto no bico colocamos duas cavilhas em 45º, segurando melhor o bico e dando um efeito de dois olhos.  

Duas perspectivas do conjunto desmontado antes de receber a cola. Detalhe das cavilhas.
A cola utilizada foi uma a base de ureia (se não me engano) à venda em lojas de marcenaria, semelhante as usadas nos compensados navais. Depois fui descobrir que o próprio epoxy que dará o acabamento final, recebe um catalizador especial que funciona como cola, ainda melhor para uso naval. Para colar será necessário alguns "sagentos" (mais uma ferramenta para a lista), mas se não tiver, existem outras técnicas, em ultimo caso, cordas ou cordilhas garantem que o conjunto cole fortemente.

Futura prancha alaia, colando com ajuda dos sargentos.
Após a colagem das tábuas vem a hora do acabamento fino, primeiramente com a grosa, depois a plaina, a lixadeira e por fim as lixas manuais. Um excelente exercício físico e de concentração. 

Plaina em ação.
A última etapa é o banho de resina, ou melhor dizendo o glass. Primeiro compra-se a resina epoxy, catalizador e o tecido de fibra de vidro. Se você mora em São Paulo eu indico a Avipol (tel. 5072 2945, diga que é o cara do Madeira & Água que indicou, quem sabe eu ganho desconto da próxima vez!). Faça a mistura (50 ml de catalizador para cada 100 ml de resina) e espalhe na prancha com uma espátula, deixando a madeira absorver bem; 10 minutos depois aplique novamente uma quantidade menor de resina e coloque o tecido por cima (ajuda muito se já tiver cortado no tamanho da prancha). Espere até o outro dia, passe uma lixa de metal (granulação 60 ou 80) tirando os excessos de tecido e resina e aplique outra camada de resina. faça o mesmo do outro lado. No final, as vezes, é necessário uma ultima pincelada de resina para cobrir pequenas imperfeições. Veja o efeito do glass depois de pronto:
Inauguração, assim como as embarcações, quebramos uma garrafa para dar sorte à nova alaia.
A fase da resina precisa de paciência, uma lixadeira elétrica ajuda muito. As primeiras mãos de lixa use granulações grossas (40, 60, 80), as ultimas devem ser de uma granulação bem fina (180, 200, ou mais), depois uma boa polida com cera automotiva e pronto. 

Moeda da Costa Rica usada como copinho para prender lash.
Antes do ultimo banho de resina ainda fizemos um furo e colocamos uma moeda para segurar a cordinha do lash. A resolução da foto está péssima, mas o resultado ficou ótimo, além de trazer boa sorte e muitas lembranças da Costa Rica. Pura vida e muito surf! 

Visão da rabeta e a parte de baixo com a moeda e a cordinha.
A estréia da prancha foi crítica, em Maresias, no dia 29 de dezembro de 2012, swell dos grandes, quase me afoguei... Surfar uma com alaia exige muito empenho, além de estar em dia com o surf e encontrar boas condições. A prancha tem muito menos flutuação, e sem quilha fica muito mais difícil fazer a linha da onda e pegar velocidade, mas depois que se aprende é como descer uma onda pela primeira vez... Dias depois consegui um surf bom com a alaia em outra praia do litoral norte de São Paulo. Ultimamente ela vai comigo e fica esperando no carro. Se o mar diminui ou fica naquela condição ideal, a tábua entra em ação.


Eu e o Mestre Murilo, trabalhando até mais tarde...